segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Despenalizado!

Portugal emancipou-se e com ele todas as mulheres e todos os homens deste país. Hoje o país aprovou a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas, se por opção da mulher, em estabelecimento legal de saúde. A partir de hoje a maternidade é encarada como uma escolha, uma opção consciente e responsável, por oposição à visão redutora do ser humano que encara a sexualidade apenas como um acto animalesco e necessariamente reprodutor.
Melhor assim. Melhor para o país e para a Pessoa Humana.
Bem haja toda a gente.

sábado, fevereiro 10, 2007

Uma pergunta directa para uma resposta honesta

[em sim-referendo.blogspot.com]

Rui Tavares
(do Público de 3 Fevereiro)

Dizer que é “despenalização da IVG” significa que não é despenalização de qualquer outra coisa, dizer que é “por opção da mulher” significa que não é por opção de qualquer outra pessoa, dizer que é até “às dez semanas” significa que não é sem qualquer limite, dizer que é “em estabelecimento de saúde” significa que não é no meio da rua.

A pergunta a que vamos responder no referendo do próximo dia 11 é compreensível para qualquer pessoa que saiba ler e isso é algo que nenhum contorcionismo político ou gramatical poderá mudar.



“Concorda com a despenalização...”. A despenalização é, evidentemente, a palavra-chave desta pergunta. É talvez surpreendente, mas o referendo de próximo dia 11 não é acerca de quem gosta mais de bebés

, tal como não é acerca de quem mais respeita o sofrimento das mulheres. A pergunta do referendo também não é “dê, por obséquio, o seu palpite acerca de quando é que a alma entra no corpo dos seres humanos”, matéria que sempre intrigou os teólogos. Não é acerca de quem gosta de fazer abortos e quem gosta de dar crianças para orfanatos. Por isso e acima de tudo, devo confessar que sofro de cada vez que ouço na televisão jornalistas falarem dos dois campos em debate como o “sim ao aborto” e o “não ao aborto”.
Numa pergunta que começa com aquele “concorda com a despenalização”, os dois votos possíveis não se dividem em pró-aborto e anti-aborto, e muito menos pró-escolha e pró-vida. Os que respondem “Sim” à pergunta são “pró-despenalização”. Os que respondem “Não” são “pró-penalização” (ou “anti-despenalização”, o que é forçosamente ser a favor da penalização). Tudo o mais é responder com alhos a uma pergunta sobre bugalhos, e qualquer chefe de redacção deveria saber isso.

“...da interrupção voluntária da gravidez...”. Até agora sabemos que a pergunta é sobre despenalizar, mas ainda não falámos de quê. Há quem tenha problemas com a expressão “interrupção voluntária da gravidez” por considerá-la um eufemismo, mas acontece que é a fórmula correcta para designar um aborto não-natural, não-espontâneo. Mesmo assim, isto não atrapalha o debate: toda a gente parte do princípio de que IVG é aquilo que, em linguagem corrente, genérica e imprecisa, chamamos de aborto. Os problemas surgem quando nos aproximamos da segunda parte da pergunta.

“...se realizada, por opção da mulher”. No mundo real, o que quer dizer esta parte da pergunta? Quer dizer que a concordância com a despenalização da IVG deve ser dada (apenas e só) no pressuposto de que ela seria realizada por opção da mulher. Basicamente, significa que se uma mulher for forçada a abortar por uma terceira pessoa, esse aborto é crime e essa tal terceira pessoa será punida. Quer dizer que, se fulano apanhar uma mulher grávida, a anestesiar e lhe interromper a gravidez, não poderá eximir-se respondendo que “o aborto foi despenalizado”, precisamente porque graças à segunda parte da pergunta o aborto só é despenalizado se for por opção da mulher.
No mundo do “Não”, porém, esta parte da pergunta é a que causa mais engulhos. Percebe-se porquê. “Por opção da mulher”? A mulher, grávida de poucas semanas, a tomar uma decisão? Sozinha? Deve haver aqui qualquer coisa de errado. Quando se lhes retorque que não poderia ser por opção de outra pessoa, e se lhes pergunta quem queriam então que fosse, a informação não é computada. Algures, de alguma forma, teria de haver alguém mais habilitado para tomar a decisão. O pai? O médico? O Estado? Então e se qualquer deles achasse que a mulher deveria abortar, contra a vontade desta? Pois é. É precisamente por isso que aquele inquietante “por opção da mulher” ali está.

“...nas primeiras dez semanas...”. Aborto livre, grita o “não”! Aqui está a prova, o aborto é livre até às dez semanas! Ora, meus caros amigos, o limite de dez semanas significa precisamente que o aborto não é livre... Ou o facto de só se poder andar até cinquenta quilómetros por hora dentro de uma localidade significa “velocidade livre”? Não faz muito sentido, não é verdade?
Enquanto digerem esta pergunta, os adeptos do “Não” mudam de estratégia. Então o que acontece às onze semanas? E o que acontece, meus amigos, quando se anda em excesso de velocidade? É-se penalizado, e a penalização vai se agravando quanto maior for o excesso de velocidade. Isso quer dizer que, nos pressupostos da pergunta, o aborto não é livre. Não era esse o problema?

“...em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Esta parte final é tão clara que vou poupar palavras. Um “estabelecimento de saúde” quer dizer que não é um estabelecimento desportivo, e “legalmente autorizado” quer dizer que não é ilegal, ou que não é legalmente desautorizado, se tal coisa existisse. Mas vale a pena notar o que “legalmente autorizado” não quer dizer. Não quer obrigatoriamente dizer do Estado, mas também não quer dizer privado, particular, ou o que seja. Quer dizer apenas que é num estabelecimento de saúde conforme com os procedimentos legais e que foi expressamente autorizado para a operação em causa.

Não há melhor barómetro da má-fé neste debate do que dizer que estamos em face de duas perguntas diferentes, ou até duas perguntas de sinal contrário (uma legítima, a outra capciosa), tentando fazer passar a ideia de que a “segunda pergunta” de alguma forma perverte a primeira, rompendo com ela. Não há aqui primeira nem segunda pergunta: há apenas uma pergunta, que se refere a determinadas condições, condições essas que qualificam e restringem o âmbito da questão. Dizer o contrário disto não é só má-fé, é principalmente má-lógica: se a segunda metade da pergunta está contida na primeira ela não pode ser mais aberta do que a anterior. Como é natural e faz sentido, cada passo da pergunta a fecha um pouco. Dizer que é “despenalização da IVG” significa que não é despenalização de qualquer outra coisa, dizer que é “por opção da mulher” significa que não é por opção de qualquer outra pessoa, dizer que é até “às dez semanas” significa que não é sem qualquer limite, dizer que é “em estabelecimento de saúde” significa que não é no meio da rua, e dizer que a pergunta se refere a um estabelecimento de saúde “legalmente autorizado” significa que não pode ser no dentista, ou na farmácia, ou no ginásio.

Tudo o resto é apenas uma desculpa para não se assumir as responsabilidades do voto.
Pessoalmente, não vejo nesta pergunta nada que não me agrade, e vejo muita coisa que me agrada. É uma pergunta de compromisso, cautelosa, que prevê os limites mais importantes, deixando a definição das políticas (de saúde, de planeamento familiar, judicial, etc.) para os actores e momentos certos. Pode responder-se sim ou não, e eu responderei “Sim”. Sou pela despenalização, naquelas condições, como outros são pela penalização mesmo naquelas condições. O que não se pode é invalidar a pergunta, degradando a sua lógica. Trata-se de uma pergunta directa. Como tal, pede apenas uma resposta honesta.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

já chega...

todos votamos SIM!!

STAPE
CNE
Estes foram os resultados em 98:É desta que alteramos o panorama? É desta que pomos o país a verde?
Vamos todos votar. Vamos todos votar SIM. É urgente acabar com o aborto clandestino! É urgente impedir que se repitam mortes por aborto clandestino! É urgente que a maternidade seja desejada e responsável.
SIM! Sim pelas mulheres. Sim pelos homens. Sim pela Pessoa Humana!

Dr. NÃO, obrigada?



Vídeo de entrevista ao Dr. NÃO. Todos os argumentos do Dr. NÃO têm dono e são identificados. Vejam o César das Neves, o Bush, o Gentil Martins, o Bagão Félix, enfim, os amigos de Portugal bem enfileirados a tentar que o país seja levado por eles ao mais profundo obscurantismo!

Os dados verdadeiros

Consulte aqui [pdf] os dados oficiais do EUROSTAT relativos à evolução das IVG na Europa.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Encontro Nacional sobre o tema: “Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez”

O Clube Safo organizou, dia 27 de Janeiro no Porto, um Encontro Nacional sobre o tema: “Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez”.
Este tema foi escolhido por considerarmos que é fundamental a nossa participação nas questões marcantes da nossa sociedade. Entendemos que a luta pela defesa dos direitos das lésbicas não é uma luta isolada, por isso defendemos a transversalidade na intervenção social e política: quanto mais direitos e liberdades forem conquistados numa determinada área, mais direitos e liberdades são conquistados para tod@s.

Foi feita uma reflexão e discussão, com base no “Estudo-Base sobre as Práticas do Aborto em Portugal”, realizado pela Associação para o Planeamento da Família, e destacaram-se as seguintes questões:

Contracepção: foi considerado muito preocupante que uma grande percentagem de mulheres que realizaram um aborto não estivessem a usar qualquer método contraceptivo, e que uma considerável percentagem de mulheres estivessem a utilizar técnicas que não podem ser considerados métodos contraceptivos (“fazer contas”).
Foi, assim, realçada a necessidade urgente de investir na educação sexual. A informação sobre os métodos contraceptivos, sobre a forma de os utilizar e sobre como os adquirir, deve chegar a todos e a todas, quer através da escola, quer através do médico/a de família. Foi ainda considerado fundamental garantir a confidencialidade quando assim for desejado por cada pessoa.
No entanto, foi enfatizado que os métodos contraceptivos podem falhar e que as mulheres poderão engravidar, mesmo que utilizem correctamente a contracepção. A probabilidade de tal acontecer é, porém, baixa.

Aconselhamento sobre contracepção após o aborto: foi considerado grave o facto da grande maioria das mulheres não ter sido aconselhada sobre contracepção depois do aborto. Foi realçada a importância deste aconselhamento acontecer para que sejam evitadas futuras gravidezes não desejadas, tendo sido dito que o facto da interrupção voluntária da gravidez acontecer num estabelecimento de saúde autorizado poderá garantir esta questão fundamental.

Complicações de saúde após o aborto: uma questão que mereceu preocupação e reflexão é a da necessidade que muitas mulheres tiveram de recorrer a um serviço de saúde para completar o aborto depois de ter utilizado o método dos “comprimidos”. Mais de metade das mulheres que utilizaram comprimidos para interromper voluntariamente a gravidez, não os tiveram por recomendação médica, tendo sido arranjados por uma pessoa amiga.
A inseguranças na prática do aborto em Portugal poderá ser reduzida com a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez até às 10 semanas, após o referendo.

Decisões difíceis: foi reconhecido como expectável que a decisão de interromper voluntariamente a gravidez tenha sido considerado difícil, muito difícil ou muitíssimo difícil pela grande maioria das mulheres. Considerou-se uma excepção que as mulheres pudessem não considerar difícil recorrer à IVG.


Foi a primeira vez que organizámos um encontro sobre um tema não especificamente relacionado com a defesa dos direitos das lésbicas. Pela primeira vez, também, tivemos um encontro com tão poucas mulheres.
Perante este facto, sentimos a necessidade de nos questionarmos sobre as possíveis causas da fraca adesão das mulheres, que habitualmente participam nas actividades do Clube Safo.

O debate com as mulheres presentes no encontro, levantou algumas questões:

□ Existirem muitas iniciativas sobre este tema, na mesma altura e promovidas por diversas associações.

□ O tema não ser muito significativo para a vida privada das lésbicas e existir falta de solidariedade para com @s heterossexuais.

□ Algumas lésbicas e homossexuais têm tendência a ser menos participativos nas questões fracturantes da sociedade, assumindo uma atitude de “adaptação” passiva às normas sociais numa tentativa de se protegerem da rejeição social.

□ Outros temas relacionadas com a cidadania, mas não especificamente relacionados com as lésbicas, poderiam ter mais adesão?

□ As pessoas que são discriminadas são mais solidárias com outras discriminações diferentes? Ou antes pelo contrário ficam mais centradas nos seus problemas?

□ As mulheres não vieram ao encontro, mas irão votar no dia do referendo?


Não foram encontradas nenhumas respostas conclusivas. Mas ficaram no ar algumas interrogações e dúvidas que nos poderão levar a futuros debates sobre o envolvimento e participação das lésbicas nas acções de defesa de direitos não especificamente relacionados com a discriminação com base na orientação sexual. Será certamente um tema interessante para aprofundarmos.

E como mensagem final queremos deixar o apelo - no dia 11 de Fevereiro vão votar!

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Barra Multimédia SIM




Esta barra pretende facilitar o acesso à informação e discussão da defesa do SIM à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento legal de saúde.

Na opção Feeds encontram-se ligações para blogues e páginas do SIM no referendo de 11 de Fevereiro.

Experimente. Para adicionar o seu blogue ou contributo contacte-nos.

domingo, fevereiro 04, 2007

«Dia 11», por Nuno Brederode Santos no "Diário de Notícias" de hoje

Como todos nós, sou desafiado a dizer, no dia 11 de Fevereiro, se quero punir ou despenalizar o aborto que for realizado na convergência de determinadas condições: por vontade da mulher e realizado durante as primeiras dez semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Eu lá estarei, a dizer nas urnas que prefiro despenalizar. E sabendo que, se a maioria nelas expressa optar como eu, o Estado estará, se não juridicamente obrigado, pelo menos politicamente legitimado para, através da Assembleia da República, verter para lei essa vontade - revogando em conformidade o regime sancionatório hoje constante do artigo 140º do Código Penal e acrescentando tudo o que a explicite e complete (e que não está, nem podia estar, na pergunta que é sujeita a referendo). O aconselhamento prévio e a dilação para reflexão cabem aqui, naturalmente.

Do "sim" a 11 de Fevereiro depende a drástica redução (para não presumir a erradicação) de um flagelo social que é o libérrimo mercado do aborto clandestino. Mesmo que isto não altere as perspectivas da mulher rica que vai abortar a Londres ou da remediada que o faz em Badajoz, permitirá às mulheres pobres ou dependentes passar do aborto rudimentar, voluntarista e mecânico (feito pelos seus meios ou às mãos brutais, impreparadas e gananciosas de uma "parteira do diabo") à segurança e dignidade do acto médico.

Só o "sim" caminha no sentido da liberdade e responsabilidade da mulher que enfrenta a gravidez ou a maternidade indesejadas. Só ele avança na materialização do princípio constitucional da igualdade (artigo 13º). Ou, em versão para «yuppies», só ele nos repõe em sintonia com uma "média europeia".

Tem sido dito, até dos dois lados em confronto, que o que está em causa é um problema de consciência. Oxalá fosse, mas não é. A questão da interrupção voluntária da gravidez, hoje e em Portugal, é um problema com dimensão política, porque de saúde pública. E é um problema de pobreza, incultura, menorização preconceituosa da mulher e medo. Nada disto faz com que a mulher que não pode (ou responsavelmente não quer) ser mãe aceite o filho indesejado. Tudo isto apenas a empurra para o aborto clandestino. A consciência tem o seu espaço de respiração na liberdade e na responsabilidade. Se o "sim" ganhar, então, de facto, levar por diante uma gravidez indesejada ou aceitar, livre e responsavelmente, dar vida passará a ser um problema de consciência.

«Por opção da mulher», frei Bento Domingues no "Público" de hoje

O "sim" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, da cultura do aborto.

1. Estava já nas últimas páginas da tese e doutoramento de Vítor Coutinho, defendida na Universidade de Münster (Alemanha) - que investiga o paradigma da fecunda interacção entre Bioética e Teologia, terminando com o elogio da interrogação (1) -, quando fui surpreendido com as respostas ao inquérito do «DN» (30/01/2007): "Concorda ou não que, na defesa dos seus princípios, a Igreja Católica se envolva directamente na campanha do referendo?" Cinquenta e oito por cento rejeita o envolvimento da Igreja e trinta e quatro por cento apoia a sua intervenção.
Donde virá tanta alergia à intervenção da Igreja Católica, identificada abusivamente com a hierarquia?
Circula, há muito, a opinião de que a Igreja tem uma resposta dogmática, irreformável, para todos os problemas sem se preocupar com as perguntas e com os dramas das pessoas, sobretudo no campo da ética sexual.
Ainda agora, na carta aos párocos e paroquianos da diocese de Lisboa sobre o referendo, o cardeal-patriarca expressa, logo no primeiro ponto, uma norma que, segundo alguns, não deixa espaço para o esclarecimento e para a liberdade de consciência: "A doutrina da Igreja sobre a vida, inviolável desde o seu primeiro momento, obriga em consciência todos os católicos. Estes, para serem fiéis a Igreja, não devem tomar posições públicas contrárias ao seu Magistério. O esclarecimento que os católicos são chamados a fazer sobre esta questão tem de ter em conta também os critérios de fidelidade à Igreja."
Os problemas de consciência nem sempre foram resolvidos desta maneira. Nem é preciso recuar até S. Tomás de Aquino. Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI, quando era professor de Tubinga, escreveu um texto, pouco antes da Humanae Vitae (1968), que Hans Küng, seu colega e amigo, transcreve, agora, nas suas Memórias. Só posso deixar, aqui, um fragmento: "Acima do Papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja."
Dir-se-á que o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e actual Papa já teve práticas pouco conformes a esta sua luminosa afirmação. Mas não podemos ignorar que, de modos diferentes, toda a Igreja é docente e discente. Esta interacção é, muitas vezes, esquecida para se pensar, apenas, na palavra da hierarquia e na dos leigos que a reproduzem.

2. A corrente laicista, que deseja a Igreja fechada na sacristia, não creio que seja maioritária na sociedade portuguesa, apesar do nosso passado anticlerical. Mas a grande alergia à presença activa da Igreja talvez resulte da ideia de que ela quer fazer da sociedade e do espaço público uma sacristia. As declarações e posições pouco católicas de certos movimentos, personalidades e de alguns padres dão a impressão de quererem entregar à repressão do Estado, do Código Penal, dos tribunais, da polícia, da cadeia, as suas convicções morais - isto é, parece que não confiam na consciência das mulheres, na sua capacidade de discernimento, para percorrerem todos os caminhos necessários até chegarem a uma decisão bem informada, responsável, prudencial, no sentido que a virtude da prudência, virtude da decisão bem informada, tem em Aristóteles e Tomás de Aquino.
Ora, como escreveu o prof. Vital Moreira, "quando se fala em "despenalização" de certa conduta, tanto no discurso leigo como na linguagem jurídico-penal, o que se pretende é retirá-la do âmbito do direito penal e do Código Penal, ou seja, da esfera dos crimes e das respectivas penas. (...) Só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer" (2). E nunca se deve confundir o que é legal com o que é moral.
Como dizia Tomás de Aquino, só somos verdadeiramente livres quando evitamos o mal, porque é mal, e fazemos o bem, porque é bem, não porque está proibido ou mandado. Todo o trabalho que a Igreja tem a fazer é, precisamente, o de ajudar as pessoas a caminharem para esse ponto de lucidez. Esclarecer as consciências não é formatá-las, não é impor-lhes uma outra consciência, não é aliená-las. Quando, nas condições e no prazo referidos, se chama "assassinas" às mulheres que recorrem ao aborto - que a Igreja e qualquer pessoa de bom senso desejam que nunca venha a acontecer -, pode estar-se a insultar, exactamente, as que sofrem os dramas que acompanham essas decisões dolorosas. A resposta ao referendo não deve extravasar o âmbito da pergunta aprovada.

3. Em última análise, a grande suspeita em relação à pergunta do referendo está neste fragmento da frase: "por opção da mulher." E porquê? Porque se julga que as mulheres não são de confiança. No entanto, foi a elas que a natureza confiou a concepção e o desenvolvimento da vida humana, durante nove meses.
Para os cristãos, esta desconfiança em relação às mulheres deveria ser insuportável. Não se lê, no Novo Testamento, que a Incarnação redentora ficou para sempre dependente da decisão de uma mulher, Maria de Nazaré (Lc l, 26-38)? Não foram as mulheres - e, segundo a cultura do tempo, não podiam testemunhar em tribunal - que são apresentadas, nos seus textos fundadores, como as grandes testemunhas do processo de Jesus? Não foram elas que testemunharam que Ele estava vivo, quando os Apóstolos já tinham concluído que estava tudo acabado? Não foi Maria Madalena a escolhida, por Jesus ressuscitado, para evangelizar os Apóstolos, para os convocar para a missão (3)?
É certo que os homens, logo que puderam, as subalternizaram. E, até hoje, por serem mulheres, estão, à partida, excluídas de serem chamadas para os ministérios na Igreja.
No debate sobre o referendo, receio que a Igreja - ao não dar sinais claros de respeito pelo pluralismo no seu interior - perca, uma vez mais, a ocasião de se manifestar verdadeiramente católica.

Marcelo critica pergunta que aprovou

O ex-presidente do PSD Marcelo Rebelo de Sousa afirmou ontem que "não teria votado" a pergunta que vai ser colocada aos portugueses no referendo, por ser uma "pergunta concebida para mascarar o núcleo duro da questão". A pergunta é igual à colocada no referendo de 1998. Marcelo Rebelo de Sousa era presidente do PSD, nesse momento, tendo a pergunta sido negociada entre PS e PSD. O social-democrata criticou a pergunta no lançamento do livro de César das Neves «Aborto, Uma Abordagem Serena», onde Marcelo Rebelo de Sousa afirmou correr-se o risco, "se o sim ganhar", de haver "luz verde para avançar" aquilo que designou o "sim" hard, ou seja, "poder alterar a lei para as 12, 14 semanas".
A Lei Orgânica do Referendo expressa especificamente que, caso o referendo seja vinculativo, a AR tem de vançar com um "acto legislativo de sentido correspondente" à pergunta do referendo. A pergunta do referendo estipula que a despenalização só é permitida "nas 10 primeiras semanas".
As críticas de Marcelo Rebelo de Sousa surgiram a propósito daquilo que classificou como "equívocos" lançados pelo "sim" durante esta campanha

«Uma pergunta directa para uma resposta honesta», por Rui Tavares no "Público" de ontem

A pergunta a que vamos responder no referendo do próximo dia 11 é compreensível para qualquer pessoa que saiba ler e isso é algo que nenhum contorcionismo político ou gramatical poderá mudar.
"Concorda com a despenalização..."
A despenalização é, evidentemente, a palavra-chave desta pergunta. É talvez surpreendente, mas o referendo do próximo dia 11 não é acerca de quem gosta mais de bebés, tal como não é acerca de quem mais respeita o sofrimento das mulheres. A pergunta do referendo também não é "dê, por obséquio, o seu palpite acerca de quando é que a alma entra no corpo dos seres humanos", matéria que sempre intrigou os teólogos. Não é acerca de quem gosta de fazer abortos e quem gosta de dar crianças para orfanatos. Por isso e acima de tudo, devo confessar que sofro de cada vez que ouço na televisão jornalistas falarem dos dois campos em debate como o "sim ao aborto" e o "não ao aborto".
Numa pergunta que começa com aquele "concorda com a despenalização", os dois votos possíveis não se dividem em pró-aborto e antiaborto, e muito menos pró-escolha e pró-vida. Os que respondem "sim" à pergunta são "pró-despenalização". Os que respondem "não" são "pró-penalização" (ou "antidespenalização", o que é forçosamente ser a favor da penalização). Tudo o mais é responder com alhos a uma pergunta sobre bugalhos, e qualquer chefe de redacção deveria saber isso.
"... da interrupção voluntária da gravidez...".
Até agora sabemos que a pergunta é sobre despenalizar, mas ainda não falámos de quê. Há quem tenha problemas com a expressão "interrupção voluntária da gravidez" por considerá-la um eufemismo, mas acontece que é a fórmula correcta para designar um aborto não-natural, não-espontâneo.
Mesmo assim, isto não atrapalha o debate: toda a gente parte do princípio de que IVG é aquilo que, em linguagem corrente, genérica e imprecisa, chamamos "aborto". Os problemas surgem quando nos aproximamos da segunda parte da pergunta.
"... se realizada, por opção da mulher".
No mundo real, o que quer dizer esta parte da pergunta? Quer dizer que a concordância com a despenalização da IVG deve ser dada (apenas e só) no pressuposto de que ela seria realizada por opção da mulher. Basicamente, significa que se uma mulher for forçada a abortar por uma terceira pessoa, esse aborto é crime e essa tal terceira pessoa será punida. Quer dizer que, se fulano apanhar uma mulher grávida, a anestesiar e lhe interromper a gravidez, não poderá eximir-se respondendo que "o aborto foi despenalizado", precisamente porque graças à segunda parte da pergunta o aborto só é despenalizado se for por opção da mulher. No mundo do "não", porém, esta parte da pergunta é a que causa mais engulhos. Percebe-se porquê. "Por opção da mulher"? A mulher, grávida de poucas semanas, a tomar uma decisão? Sozinha? Deve haver aqui qualquer coisa de errado.
Quando se lhes retorque que não poderia ser por opção de outra pessoa, e se lhes pergunta quem queriam então que fosse, a informação não é computada. Algures, de alguma forma, teria de haver alguém mais habilitado para tomar a decisão. O pai? O médico? O Estado? Então e se qualquer deles achasse que a mulher deveria abortar, contra a vontade desta? Pois é. É precisamente por isso que aquele inquietante "por opção da mulher" ali está.
"...nas primeiras dez semanas...".
Aborto livre, grita o "não"! Aqui está a prova, o aborto é livre até às dez semanas! Ora, meus caros amigos, o limite de dez semanas significa precisamente que o aborto não é livre... Ou o facto de só se poder andar até 50 quilómetros por hora dentro de uma localidade significa "velocidade livre"? Não faz muito sentido, não é verdade?
Enquanto digerem esta pergunta, os adeptos do "não" mudam de estratégia. Então o que acontece às 11 semanas? E o que acontece, meus amigos, quando se anda em excesso de velocidade? É-se penalizado, e a penalização vai-se agravando quanto maior for o excesso de velocidade. Isso quer dizer que, nos pressupostos da pergunta, o aborto não é livre. Não era esse o problema?
"... em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"
Esta parte final é tão clara que vou poupar palavras. Um "estabelecimento de saúde" quer dizer que não é um estabelecimento desportivo, e "legalmente autorizado" quer dizer que não é ilegal, ou que não é legalmente desautorizado, se tal coisa existisse.
Mas vale a pena notar o que "legalmente autorizado" não quer dizer. Não quer obrigatoriamente dizer do Estado, mas também não quer dizer privado, particular, ou o que seja. Quer dizer apenas que é num estabelecimento de saúde conforme com os procedimentos legais e que foi expressamente autorizado para a operação em causa. Não há melhor barómetro da má-fé neste debate do que dizer que estamos em face de duas perguntas diferentes, ou até duas perguntas de sinal contrário (uma legítima, a outra capciosa), tentando fazer passar a ideia de que a "segunda pergunta" de alguma forma perverte a primeira, rompendo com ela. Não há aqui primeira nem segunda pergunta: há apenas uma pergunta, que se refere a determinadas condições, condições essas que qualificam e restringem o âmbito da questão. Dizer o contrário disto não é só má-fé, é principalmente má-lógica: se a segunda metade da pergunta está contida na primeira, ela não pode ser mais aberta do que a anterior. Como é natural e faz sentido, cada passo da pergunta a fecha um pouco.
Dizer que é "despenalização da IVG" significa que não é despenalização de qualquer outra coisa, dizer que é "por opção da mulher" significa que não é por opção de qualquer outra pessoa, dizer que é até "às dez semanas" significa que não é sem qualquer limite, dizer que é "em estabelecimento de saúde" significa que não é no meio da rua, e dizer que a pergunta se refere a um estabelecimento de saúde "legalmente autorizado" significa que não pode ser no dentista, ou na farmácia, ou no ginásio. Tudo o resto é apenas uma desculpa para não se assumir as responsabilidades do voto. Pessoalmente, não vejo nesta pergunta nada que não me agrade, e vejo muita coisa que me agrada.
É uma pergunta de compromisso, cautelosa, que prevê os limites mais importantes, deixando a definição das políticas (de saúde, de planeamento familiar, judicial, etc.) para os actores e momentos certos. Pode responder-se sim ou não, e eu responderei "sim". Sou pela despenalização, naquelas condições, como outros são pela penalização mesmo naquelas condições. O que não se pode é invalidar a pergunta, degradando a sua lógica. Trata-se de uma pergunta directa. Como tal, pede apenas uma resposta honesta.

«Os limites de cada um», por Helena Matos no "Público" de ontem

Pois aqui estamos no ano de 2007 referendando "a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado". Mas porquê e para quê? Comecemos pelo porquê.
O que terá levado um país que descolonizou (em seis meses note-se!), entrou na CEE e no €uro sem que alguma vez se tivesse colocado a hipótese de referendar a vontade dos seus cidadãos a avançar para um referendo sobre uma matéria de consciência? Os portugueses não pediram este referendo. Ele foi-lhes imposto através dum acordo entre um primeiro-ministro, António Guterres, e um líder da oposição, Marcelo Rebelo de Sousa. Ou seja, duas pessoas que são contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas. Com essa decisão não sei se ficaram de bem com as respectivas consciências mas tenho a certeza de que prestaram um mau serviço aos portugueses, que se vingaram abstendo-se, e prestaram também um mau serviço à democracia - note-se que actualmente se começa a dar como facto consumado que se terá de alterar a lei do referendo para contornar a fraca participação dos portugueses nestes escrutínios.
Mas esta opção de Marcelo e Guterres remete para uma outra questão que é muito dos nossos dias e muito mais lata que a polémica em torno da interrupção da gravidez: podem ou não as convicções religiosas ou a pertença a determinadas associações sobrepor-se, em termos de obediência, aos compromissos assumidos na vida pública e política? Todos os dias nos chegam notícias sobre mulheres polícias muçulmanas que, trabalhando na polícia britânica, se recusam a cumprimentar os homens, ou sobre os taxistas muçulmanos que, apesar de trabalharem em aeroportos norte-americanos e não na Arábia Saudita, se recusam a transportar os passageiros que tragam bebidas alcoólicas... Estes são casos em que claramente não só as convicções religiosas se sobrepõem não só às obrigações profissionalmente assumidas como se subestimam completamente os valores do outro e da sociedade em que se vive.
Noutros casos somos confrontados com algo menos obviamente agressivo mas não menos inquietante. Por exemplo, em que medida é que, para alguns políticos portugueses, a pertença à Maçonaria se sobrepôs e sobrepõe à filiação partidária e aos compromissos publicamente assumidos. Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde português foi apresentado primeiro à Maçonaria do que ao Governo pelo ministro que o concebeu.
No caso do referendo à interrupção voluntária da gravidez estamos claramente perante um caso em que dois líderes políticos deixaram que as suas convicções íntimas se sobrepusessem às suas responsabilidades públicas e políticas. A interrupção voluntária da gravidez estava em discussão na Assembleia da República e o recurso ao referendo não fora sequer equacionado, quer para esta questão quer para outra qualquer.
De facto, a interrupção voluntária da gravidez não devia ser sujeita a referendo. Tal como não o foi o divórcio para o casamento civil ou o acesso livre aos métodos contraceptivos.
Imagine-se que estes dois assuntos tinham sido referendados. Do lado do "não" discutir-se-ia infinitamente o apoio que o Estado devia dar aos casais em crise, as consequências dramáticas do ponto de vista social e familiar dum divórcio, o impacto psicológico dessa ruptura e o arrependimento de muitos daqueles que tomaram tal decisão. A mesma técnica de sofista infatigável se pode aplicar no que respeita ao acesso aos métodos contraceptivos. E contudo estes, num passado não muito longínquo, foram vistos como algo que comprometia os alicerces e os valores mais profundos da nossa sociedade.
Suponha-se que se tinha referendado o acesso livre aos métodos contraceptivos em 1976 em vez de se instituírem as consultas de planeamento familiar?! Dito assim parece despropositado. Não nos imaginamos a viver numa sociedade em que os outros pudessem decidir sobre se podíamos ou não divorciar-nos ou voltar a casar e muito menos nos parece aceitável que fosse o Estado a determinar se podíamos ou não recorrer aos contraceptivos. E contudo vamos votar para decidir se as mulheres podem ou não interromper uma gravidez até às dez semanas.
Quando Vasco Rato, no último «Prós & Contras», na RTP1, perguntou "Mas se não for a pedido da mulher deve ser a pedido de quem?" não obteve resposta em nenhuma das vozes que, segundos antes, tanto se indignavam com a possibilidade de a mulher decidir, expressa na pergunta do referendo. Mas, na verdade, se não for a pedido da mulher, uma interrupção de gravidez deve ser a pedido de quem?
Aquilo que divide o "sim" do "não" são concepções diferentes do nosso poder sobre a intimidade dos outros e em que medida o Estado lhes deve impor as opções que nós temos como certas. Até onde achamos que o Estado pode controlar não só ou nem tanto as nossas vidas mas sobretudo a dos outros? Esta é a questão que está omnipresente quando votarmos a 11 de Fevereiro.
O que está em causa neste referendo não é o que nós fazemos, faríamos ou fizemos quando e se confrontados com o dilema de interromper ou não uma gravidez. O que está em causa é o nosso direito a impor uma gravidez.
Pessoalmente não creio que qualquer um de nós tenha ou possa ter esse direito.