sexta-feira, outubro 27, 2006

Esther Mucznik - A propósito do aborto

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A polémica em torno do aborto - que se aproxima com o referendo já programado para Janeiro de 2007 - é sempre uma polémica no mínimo apaixonada. Não se discute e opina sobre esta questão com o mesmo grau de distanciação com que se discute, por exemplo, sobre a reforma da segurança social. As razões são evidentes: a discussão em torno do aborto mexe com questões de vida ou morte, de ética social e religiosa, com as relações entre os sexos, com toda a nossa arquitectura ideológica.
A verdade é que o ventre das mulheres foi, ao longo da história, um instrumento de poder e, tantas vezes, de violência. As ditaduras utilizaram-no sempre ao serviço da sua política, proibindo e reprimindo a contracepção e o aborto ou promovendo-os coercivamente ao sabor das suas políticas de natalidade: a Albânia socialista do "camarada" Enver Hodja e a China comunista são exemplos recentes dessas políticas de sinal contrário no que respeita à natalidade. Em muitas guerras, com destaque para os Balcãs na última década do século XX, a violação, para além de troféu de guerra, serviu também como tentativa de extermínio étnico.
Ninguém foi, no entanto, tão longe como os nazis no esforço para forjar uma raça pura, através da selecção eugénica. No entanto, hoje como ontem, a demografia permanece uma arma. Pouco tempo antes da sua morte, Yasser Arafat afirmava-o com toda a clareza: "A nossa maior arma é o ventre das nossas mulheres." E, com efeito, face a um Ocidente que deixou de procriar, a demografia tornou-se mais eficaz do que qualquer guerra.
No mundo livre, o combate das mulheres pela sua emancipação, pela igualdade de direitos políticos, pelo acesso à educação e ao mercado de trabalho precedeu a luta pelo controlo da natalidade e o planeamento familiar. Nesse campo, a introdução da pílula foi uma revolução na prática milenária da contracepção feminina. Mas o feminismo dos anos 60 e 70, apoiado pelo radicalismo de esquerda, foi mais longe: fez da legalização do aborto um símbolo e uma bandeira da libertação das mulheres, fez do aborto um "direito ao nosso corpo" e uma questão de poder também, "quem manda aqui - na minha barriga - sou eu"; durante décadas uma das principais, senão mesmo a principal reivindicação dos movimentos feministas era o direito ao aborto - entendido tantas vezes como a emancipação da maternidade, considerada um obstáculo à sua própria emancipação como mulheres.
A revolução dos anos 60 deu um salto que as primeiras feministas estavam longe de imaginar e provavelmente de querer: a banalização do sexo, considerada ela também como expressão da igualdade com os homens, mas que acabou no entanto por se voltar em primeiro lugar contra as próprias mulheres. O mito da mulher desinibida e moderna que vive o sexo de uma forma "livre" e "natural" trouxe a ilusão da igualdade, mas muito mais sofrimento... Porque se o sexo é algo de natural, ele não é inocente e pelo menos para a mulher tem sempre consequências senão físicas, pelo menos emocionais e psicológicas. Não tenho a menor dúvida de que hoje para grande parte das jovens essa aprendizagem - dolorosa para a geração anterior - já é um dado adquirido. Por isso, 40 anos depois, esse combate, no Ocidente, é de facto um combate de retaguarda.
Dito isto, reconheço que Portugal tem um atraso de algumas décadas. Não tanto na legislação - nas suas linhas essenciais, ela existe desde 1984, permitindo a interrupção da gravidez quando está em causa a vida ou a saúde física e psíquica da mãe, em caso de malformação incurável do feto, ou em caso de violação - mas na resistência à sua aplicação prática, e na criminalização das mulheres que a ele recorrem. E apesar de considerar que o próximo referendo apenas se justifica porque houve outro anterior que se pronunciou, embora por uma maioria ínfima, contra a despenalização do aborto, participarei nele porque uma simples votação na Assembleia da República, apesar de politicamente habilitada a decidir sobre esta questão do ponto de vista legal, não teria a mesma legitimidade social, depois do referendo de há oito anos.
Tenho claro que, independentemente da pergunta formulada, a maioria das pessoas pronunciar-se-á simplesmente a favor ou contra o aborto. E que uma resposta maioritariamente negativa retirará simultaneamente legitimidade à legislação já aprovada, tornará ainda mais difícil a sua aplicação e certamente endurecerá ainda mais a criminalização das mulheres que recorram ao aborto. Por isso votarei a favor com a consciência clara de que a aplicação da lei despenalizando a interrupção voluntária da gravidez dentro das normas definidas apenas contribuirá para que este se faça em condições de segurança para as mulheres que a ele recorram. Não fará aumentar nem diminuir os abortos, que sempre existiram e continuarão a existir - apesar de todos os meios contraceptivos hoje existentes -, não fará aumentar nem diminuir a natalidade. Esta tem a ver com os valores que defendemos, com a valorização do papel individual e social da maternidade, com a possibilidade de conciliação desta com a participação social e política da mulher. Tem a ver com a forma como encaramos as relações entre os sexos, com uma ética do comportamento, com a responsabilização dos nossos actos. Tem a ver com as convicções pessoais e religiosas, com a consciência individual de cada um. A lei não obriga, não incita, nem cria a realidade, apenas reconhece e regulamenta a já existente.
O meu pior receio é que esta questão, que poderia ser uma oportunidade de debate sobre a nossa cultura e os seus valores, seja mais uma vez instrumentalizada política e partidariamente e até religiosamente, inibindo, abafando e adiando mais uma vez um debate urgente. Por que motivo há tantas adolescentes grávidas? Por que razão um terço dos casais portugueses tem apenas um único filho? Porque regrediu a natalidade ao ponto de não renovação de gerações? Qual o papel hoje da família?, tais são algumas questões, entre muitas outras, sobre as quais seria fundamental uma reflexão de fundo. Esperemos que a autocensura política e ideológica, quer de um lado quer do outro, não o impeça.

Investigadora em assuntos judaicos

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