segunda-feira, janeiro 29, 2007

"Tou? Dona Maria? Tenho aqui um problemazinho..."

Sónia Morais Santos



"Tou? Dona Maria? Tenho aqui um problemazinho..." Do outro lado da linha, a resposta não se faz esperar. "Ó meu amor, isso resolve-se num instante!" No mundo do aborto clandestino as meias palavras bastam. Há um código que se usa e se decifra e que faz sentir, de forma indelével, o peso da ilegalidade. "E quanto tempo? Uns 15 dias de falta, não?" Pois. Mais ou menos isso. "Sim senhora, pode vir já amanhã, que eu resolvo-lhe isso."

"Isso", o "problema", o "assunto", o "atraso", o "azar". Há até quem conheça expressões mais metafóricas como "arroz queimado" para designar uma gravidez indesejada que se pretende interromper. A penalização prevista na lei obriga a ter certas cautelas.

"E tem anestesia? É que há sítios onde não têm." Noutras circunstâncias, a conversa poderia nublar-se a partir daqui. Em princípio não se fala mais do que o necessário, sobretudo não se usam termos que possam revelar "o assunto". Mas a dona Maria não parece temer assim tanto a possibilidade de escutas telefónicas ou falsas identidades do outro lado do telefone. "E fazem sem anestesia? Credo! Que gente tão bruta! Minha querida, fica a dormir um bocadinho e daí a nada está fina!" O preço é discutido ("Estou a levar 400 euros, mas como já tem filhos faço-lhe um descontozinho, paga 350 euros e não nos zangamos por causa disso"), e o encontro fica marcado para o dia seguinte.

Quem se depara com um "problema" destes não tem dificuldades em descobrir onde e como resolvê-lo. Há sempre uma amiga que já passou pelo mesmo, ou uma amiga de uma amiga de outra amiga que tem um número de telefone qualquer. Foi assim que, há dois anos, Lurdes descobriu um apartamento num prédio velho, bem no centro de Lisboa. "Tinha perdido o meu filho há pouco tempo, num acidente de mota. Deitei-me com o meu marido duas vezes, nos cinco meses depois da morte do Bruno. Tive azar. Aquela gravidez era uma violência muito grande. Não podia, não conseguia, não queria."

Lurdes fez então o que faz quem se encontra numa encruzilhada. Procurou ajuda. Uma amiga deu-lhe um número, ensinou-lhe o código, "ligas e dizes que é por causa de um atraso", e alertou-a para os 450 euros e umas "dorzitas", fruto da inexistência de anestesia. Lurdes seguiu os passos previstos, mas as suas dores não tiveram direito a diminutivo. "Ainda hoje oiço o aspirador, sabe? E ainda hoje sinto aquelas dores. E as outras, que vieram depois." Um processo infeccioso atirou-a para o hospital com febres altas e dores insuportáveis: "Estive 15 dias internada, entre o cá e o lá. Quando me contorcia, o médico que me atendeu em Santa Maria disse-me: 'Quando estavas a fazê-lo não choravas, não é?' Senti-me marginal duas vezes. Primeiro porque tive de falar em código com uma mulher que não sei sequer se é enfermeira, sujeitar-me a um sítio medonho, em que entreguei um envelope com dinheiro, como se estivesse a comprar droga. Depois foi a forma como fui tratada no hospital." Ainda assim, Lurdes não tem dúvidas. "Continuo absolutamente segura de ter feito o melhor. Não conseguia ligar-me a um filho, tendo perdido outro há tão pouco tempo, e tendo mais dois para criar. Mesmo no hospital pensava: antes morrer que ter tido esta criança."

Voltamos ao apartamento onde, há dois anos, Lurdes foi atendida. Fica num terceiro andar, num prédio sem elevador. A casa é escura, escuríssima, e suja, e pequena, duas assoalhadas e um hall. Os passos são abafados pela alcatifa coçada, o olhar detém-se nos quadros com paisagens bucólicas. A porta entreaberta deixa antever uma marquesa velha com estribos desengonçados. "Venha depois de amanhã, às 08.30, em jejum. São 450 euros." E anestesia? "Pois, isso não, que é muito perigoso, ainda me morria para aí. Mas não dói nada, é como ter as dores do período. Depois fica aqui uma meia hora em repouso para não me ir vomitar à porta do prédio."

A utilização cada vez maior do Cytotec como método abortivo fez com que diminuíssem os abortos de vão de escada. Mas ainda há muitos, nas cidades e nos meios rurais. O medicamento vende-se na farmácia e está indicado para o estômago, mas pode provocar o aborto. As mulheres que querem interromper a gravidez recorrem cada vez mais ao misoprostol (princípio activo do Cytotec) mas não sem correrem riscos. Miguel Oliveira e Silva, ginecologista/obstetra do Hospital de Santa Maria, diz que "podem ocorrer problemas se não houver vigilância médica". A automedicação pode levar a "abortos incompletos ou até a casos em que a gravidez prossegue."

Em Lisboa, visitámos outros dois sítios mais ou menos lúgubres, mais ou menos de vão de escada. Mas há o outro lado. As clínicas modernas, onde ginecologistas também "resolvem problemas". Uma delas fica na zona do Marquês de Pombal. Ao telefone, o código do costume: "Era para marcar uma consulta. Estou com um atraso e..." As reticências, aqui, bastam. Do outro lado, uma voz doce tranquiliza: "Claro, claro. Marcamos para amanhã. Vem à consulta e faz a ecografia. No dia seguinte trata-se do assunto, sim?" E o preço do segundo dia? "Depende. Entre os 500 e os 700 euros."

Neste consultório elegante e sofisticado, uma boa ideia resolve o que poderia ser um problema. As grávidas felizes com a gravidez ficam numa sala de espera, as que se decidiram pela interrupção são encaminhadas para outra assoalhada. Numa sala há revistas de bebés nos molhos de publicações, na outra não. Quando a médica chama, entra-se numa sala luminosa, onde brilham instrumentos e máquinas. A médica gosta pouco de perguntas, mas diz o essencial: "Fico muito feliz por trazer à vida crianças desejadas, que sei que serão amadas. Mas também resolvo problemas. Sou médica e sei fazê-lo em condições de higiene, e humanas. Sou pela maternidade e paternidade conscientes. E é só."

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