domingo, janeiro 14, 2007

padre Mário Oliveira

2007 JANEIRO 05
Estou triste com os meus irmãos bispos católicos portugueses. Acabam de protagonizar, em conjunto, mais uma acção de intolerância que nos envergonha a todas, todos os que somos Igreja católica em Portugal. As suas homilias de natal e de Ano Novo foram verdadeiras declarações de guerra contra a lei de interrupção voluntária da gravidez, que vai a referendo no dia 11 de Fevereiro próximo. Para seu mal e para mal da Igreja, à qual deveriam presidir na caridade e no serviço, os bispos voltaram a não surpreender positivamente. E é pena. Voltaram a ser mais do mesmo. O que perfaz um tremendo desastre. E não só os bispos da Igreja católica que está em Portugal. Também o Bispo de Roma, o papa Ratzinger, certamente feito com eles, juntou a sua à voz deles e fez afirmações, nomeadamente, no dia primeiro de Janeiro, que raiam o terrorismo doutrinal. Tamanha unanimidade episcopal contra a autonomia da sociedade civil de um pequeno país como Portugal reveste foros de um inqualificável pecado de intolerância, causador de ateísmo.

Que os bispos sejam contra a prática do aborto é obviamente saudável e previsível. Qualquer pessoa de bom senso só pode ser contra o aborto. Não é preciso ser-se bispo da Igreja católica. Nem padre católico. Basta ser-se pessoa humana de bom senso. Mas aquele tom sem entranhas de humanidade com que todos os bispos católicos portugueses, mais uma vez, disseram que são contra o aborto, como se apenas eles o fossem, chega a ser perverso. Soa a farisaísmo que tresanda e mata. Soa àquele tipo de santidade farisaica que, no seu tempo e país, arrancou sucessivos “ais” ao próprio Jesus. E que costuma desenvolver-se em ambientes religiosos nos antípodas de Deus, o de Jesus, invariavelmente vazios de entranhas de misericórdia e de perdão, de acolhimento e de ternura para com todas as vítimas, também as vítimas de certa moral imoral que se faz sem as pessoas nas suas situações concretas.

Dói-me que os meus irmãos bispos tenham voltado a falar, do alto da sua cátedra, como os campeões da moral, os puros, os defensores da vida. E como se todas as outras pessoas, inclusive católicas/católicos que já não vão pelos moralismos das suas homilias sem profecia fossem um bando de terroristas, assassinos, devassos, perversos, numa palavra, pecadores. Haja modos, senhores bispos!

Felizmente, a sociedade portuguesa, na sua esmagadora maioria, (quase) já nem ouve este tipo de homilias dos nossos bispos, proferidas em espaços eclesiásticos e em assembleias pretensamente litúrgicas, nas quais continua a não haver lugar para nenhuma espécie de contraditório por parte de alguém, muito menos, alguém que fale sob a inspiração do Espírito Santo. Não haverá por isso o risco – oxalá não me engane – duma guerra civil entre os defensores do NÃO e os defensores do SIM à Lei de despenalização do aborto. Mas que as homilias dos bispos católicos portugueses, às quais também se juntou a do papa Ratzinger em Roma, são objectivamente uma declaração de guerra contra a referida lei e contra os defensores do SIM, é mais do que óbvio. Com elas, os bispos deram também cobertura às vergonhosas e terroristas posturas das senhoras católicas defensoras do NÃO, em lugar de publicamente as chamarem à razão, como seria eticamente desejável, contra o manifesto fanatismo de cruzada em que todas elas estão a ser medonhamente férteis.

No meio de todo este ensurdecedor ruído eclesiástico católico contra a lei de despenalização do aborto, dou-me conta de que os meus irmãos bispos até se têm esquecido das muitas mulheres, nomeadamente das mais pobres, mais marginalizadas e menos letradas que, todos os anos, abortam clandestinamente em Portugal e que continuarão a abortar desse mesmo modo, se, entretanto, a lei de despenalização do aborto voltar a não ser aprovada por culpa de todo este terrorismo moralista católico, orquestrado por eles. O facto, só por si, leva-me a concluir que, afinal, os meus irmãos bispos não estão assim tão contra a prática do aborto, como parece. Basta ver que todos os anos realizam-se milhares e milhares de abortos clandestinos em Portugal. E os bispos católicos portugueses não dizem sequer uma palavra contra eles nas suas homilias. Os bispos sabem que eles se fazem, mas nada dizem. Não levantam a sua voz contra semelhante prática. Só quando a sociedade civil se preocupa com esse flagelo dos abortos clandestinos e procura uma solução legal que lhe ponha cobro ou, pelo menos, o diminua drasticamente, é que os bispos gritam e barafustam. Até parece que lhes dá mais jeito a prática generalizada do aborto clandestino do que a prática de abortos em hospitais públicos. Mais. Parece, até, que enquanto for clandestino, o aborto não é um mal assim tão grave. Grave é haver uma solução legal que tente pôr cobro a esse flagelo. Grave é haver uma lei de despenalização do aborto que abra a porta dos hospitais públicos às mulheres que, em consciência, e de forma irreversível decidiram abortar. Enquanto tais mulheres apenas puderem recorrer ao aborto clandestino, os bispos católicos não se importam por aí além. Pelo menos, ninguém os ouvirá falar disso, desse mal, nas suas homilias, muito menos, nas homilias de natal e de ano novo, o dia mundial da paz. O que verdadeiramente põe furiosos os nossos bispos católicos é a possibilidade de o aborto ser realizado em condições de segurança e de higiene, de dignidade humana e sem exploração financeira, como sucederá, se a lei for aprovada. Não é o aborto em si, muito menos, o aborto clandestino, feito nas piores condições que os põe furiosos. Esse, pelos vistos, pode continuar a realizar-se e até aumentar, que os bispos católicos não dizem uma palavra.

Como se explica esta postura? É aqui que é preciso inteligência para percebermos todo o perverso escondido no moralismo por que se norteiam os nossos bispos católicos. Está visto que o que está verdadeiramente em questão para eles, não é a prática do aborto. Se fosse, os bispos seriam capazes de trocar os altares das suas catedrais (isto é, os templos onde eles têm as suas cátedras!) pelas portas das clínicas privadas onde todos os dias se realizam abortos clandestinos, para, desse modo, tentarem convencer as mulheres que lá se dirigem a desistirem dessa sua decisão. Ao mesmo tempo, domingo, após domingo, ergueriam a sua voz nas homilias das missas, para condenarem semelhante prática contrária à vida humana. Até conseguirem convencer todas as mulheres a nunca mais abortarem. E, sobretudo, seriam incansáveis na realização duma concertada acção política que proporcionasse a criação de condições de vida digna a todas as mulheres do país, de modo que, quando elas decidissem engravidar, a gravidez tivesse sempre as condições objectivas indispensáveis para poder ir até ao fim.

Desenganem-se, porém. Porque não é a prática de abortos que está em questão. Essa é a cortina de fumo que os bispos católicos portugueses e do Ocidente gostam de formar e a bandeira que gostam de agitar para melhor esconderem o que verdadeiramente os faz correr/gritar nas homilias e nos confessionários; e que os leva a mobilizar exércitos de senhoras-bem e com muito tempo livre para darem visibilidade à guerra contra a lei de despenalização do aborto, muitas das quais, sempre que foi preciso, correram já a abortar, elas próprias, ou a acompanhar as suas filhas e netas adolescentes às clínicas privadas, em Espanha ou noutros países da Europa, e quase sempre com a bênção do respectivo pároco que é visita frequente da casa, senão mesmo do bispo amigo, com quem chegaram a partilhar a sua momentânea aflição…

Fixem então o que aqui lhes digo. O que os meus irmãos bispos não podem tolerar é que a sociedade civil progressivamente se afirme perante eles e acabe a dispensá-los de vez. O que os meus irmãos bispos não podem tolerar é que a Cristandade Ocidental, em que eles foram senhores absolutos e divinos, com precedência sobre a nobreza e o povo-servo-da-gleba, desapareça de vez da História, como, felizmente, está em vias de suceder. O que os meus irmãos bispos não podem tolerar é que a sociedade civil se autonomize irreversivelmente deles e chegue a ser capaz de legislar, inclusive, sobre questões éticas, como o aborto e a eutanásia. Esta perda de poder clerical/episcopal é que os meus irmãos bispos não podem suportar. Jamais o dirão, de viva voz, evidentemente, mas em verdade, em verdade vos digo: é sobretudo isso que os faz correr.

Por mim, padre/presbítero da Igreja do Porto, só encontro razões para me alegrar com a crescente afirmação da sociedade civil. Sei que a Lei de despenalização do aborto é da sua responsabilidade e saúdo-a. Não é uma lei da Igreja católica. Sei também que, se ela vier a ser aprovada, como desejo, nenhuma mulher grávida será obrigada a ir por ela. Jamais. É apenas mais uma porta que se abre às mulheres grávidas, se alguma delas em consciência decidir abortar. Reconheço que a Lei não será a solução ideal contra o flagelo dos abortos clandestinos, mas não tenho dúvidas em afirmar que é muito menos má que a presente situação de abortos clandestinos. Por isso, voto SIM no referendo do dia 11 de Fevereiro de 2007.

Se ganhar o SIM, ganha a vida humana com mais dignidade. Ganha a sociedade civil que se afirma mais e mais. Ganha a cidadania de cada uma, cada um de nós, crentes, agnósticos ou ateus.

Se ganhar o NÃO, ganha o Medo, o Moralismo farisaico, a Hipocrisia, o Infantilismo, que são outras tantas formas de fascismo contra as populações, nomeadamente, as mais pobres e as menos ilustradas. O que seria intolerável.

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