terça-feira, janeiro 30, 2007

Campanha para o referendo sobre o aborto começa hoje

Truques, tiques e tradições
30.01.2007 - 09h16 Ricardo Dias Felner


De um lado, há muita gente da catequese, yuppies moldados pela Opus Dei, pessoas sérias e normais; do outro, há feministas e intelectuais, antifascistas e académicos, okupas e ecologistas, pessoas sérias e normais. Ambos lutam pela vitória no referendo. Mas uns lutam mais do que os outros. No dia em que começa a campanha, o PÚBLICO mostra como se organizam no terreno os movimentos do "sim" e do "não".

Imagens do feto? "O mais possível"

A sessão marcada para esse dia era a primeira na nova sede da Plataforma Não Obrigada, um apartamento na praça do Saldanha, bem no centro de Lisboa. Situado num prédio antigo, o andar parecia completamente remodelado, faltando apenas pequenos pormenores, como a afixação de uma placa na porta com o nome do movimento.

No interior, sentia-se a agitação própria de uma inauguração. O ambiente assemelhava-se ao de um sofisticado escritório de advogados, com muita gente a entrar e a sair, papéis na mão, o telemóvel colado ao ouvido.

Logo junto à entrada, homens de fato impecável, nó de gravata à António Lobo Xavier, e mulheres de saia comprida e tailleur, tratavam de preparar o material a distribuir pela imprensa. No corredor, um grupo de três activistas afinava os últimos pormenores sobre uma outra acção.

Após um pequeno atraso, propositado, para que os jornalistas se instalassem, toda a gente começou então a dirigir-se para a sala. De frente para os jornalistas, alinhavam-se três cadeirões em pele espessa e odorosa, não existindo qualquer barreira entre os oradores e a assistência.

Esta disposição, tornada famosa nas conferências de Davos, onde se reúnem as elites políticas e económicas, e usada cada vez mais pelas agências de comunicação, dava já uma medida do cuidado posto na sessão pela Plataforma. Mas havia mais. Elevando-se de cada um dos cantos, nas costas dos oradores, dois ecrãs plasma negros, injustificadamente grandes face à exiguidade da sala, sugeriam a modernidade - o vanguardismo - que o movimento quer contrapor aos que lhe colam fundamentos arcaicos, confessionais e conservadores.

Para além deste simbolismo formal, os televisores mostravam, pela primeira vez, aquela que acabaria por ser a grande aposta da pré-campanha da Plataforma, a sua cartada decisiva: a materialização do aborto, a humanização do aborto, a exposição - a cores, a três dimensões e em movimento - "do feto que alguns querem matar".

A estas sensações, consideradas "sensacionalismo" pelos detractores do movimento, haveriam os três médicos convidados de associar noções científicas básicas e uns quantos números sobre pulsações às oito semanas de vida intra-uterina. Os três sabiam, contudo, que o impacto das imagens mostradas era muito mais eficaz que qualquer teorização, o que, aliás, não esconderam. Questionado sobre se aquelas imagens seriam mostradas ao público, o obstetra João Paulo Malta respondeu sem hesitar, rodeado da parafernália multimédia: "O mais possível."

Diz-me como beijas, dir-te-ei quem és

Tecnologia à parte, outros indicadores dão a medida da diferença de estilo, de classe social, relativamente à comunidade do "sim", mais heterogénea e desmazelada. O beijo, por exemplo. Entre os grupos do "sim" prevalecem largamente os dois beijos na cara, sendo excepções um ou outro socialista beirão deslumbrado com o trato do jet set de Cascais e, de forma irregular, Paula Teixeira da Cruz.

No "não", pelo contrário, só é admissível o beijo unifacial. Sem excepções. Sempre.

Posto isto, se o cumprimento do "sim" representa a tradição mais vulgarizada em Portugal, nesta matéria, que significado tem o beijo unifacial? É ele um beijo elitista? Serão as pessoas do "não" elitistas?

Ora, não é a primeira vez que o beijo unifacial é usado para definir um dos lados da barricada, numa campanha eleitoral. Ele já foi referido nas campanhas do CDS-PP e do PSD, em anteriores referendos (regionalização e IVG), bem como em cerimónias várias envolvendo Santana Lopes. Na sequência desses textos, já houve quem se insurgisse contra estas generalizações, chamando-lhes sociologia de algibeira, preconceito ferroviário (contra a linha do Estoril) ou religioso.

É certo que faltam estudos que permitam extrapolações mais rigorosas sobre a origem social e a conta bancária de quem assim beija. E que beijar assim não condena ninguém. Mas uma coisa parece indesmentível. Esse não é o cumprimento tradicional dos sindicalistas, nem dos utentes dos barcos da Soflusa, nem das empregadas domésticas, nem das lojistas do centro comercial de Odivelas, nem dos agricultores de Sobral de Monte Agraço.

Todos diferentes, todos diferentes

Não há uma cara que se fixe dos movimentos do "sim". Toda a gente fala ao mesmo tempo, sobre tudo, sem critério nem estratégia. Num dia aparece Odete Santos a vociferar contra a demagogia das mulheres de classe alta, de manhã é uma dirigente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) a lembrar o sofrimento das mulheres que abortam; à tarde é um vereador do Bloco de Esquerda incomodado com a presença no mesmo movimento de um presidente da câmara do PSD; ao sábado um médico negando o "síndrome do aborto".

Não há, portanto, entre os activistas do "sim" uma ideia de quais devem ser os argumentos centrais da campanha a favor da interrupção voluntária da gravidez (IVG). E não há nem a preocupação, nem a habilidade, nem a serenidade política para escolher as pessoas mais dotadas para fazerem essa comunicação.

Esta falha resulta, em boa medida, de quezílias antigas, decorrentes de conflitos históricos e pessoais entre as várias esquerdas no terreno. Há pessoas do PS que não se sentam na mesma sala com pessoas do Bloco de Esquerda; há pessoas do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim que não se sentam à mesma mesa com pessoas do Movimento Voto Sim; e há pessoas do PCP que não se sentam à mesma mesa com ninguém.

Por outro lado, existirão também à esquerda muitos políticos querendo assumir protagonismo na matéria, o que não é mau em si. O problema é que se trata, quase sempre, de um protagonismo preguiçoso, displicente, aquém do empenho posto nas disputas partidárias, quer do ponto de vista táctico, quer do ponto de vista estratégico, quer do ponto de vista dos recursos e da retórica.

Uma ideia de cada vez fixa-se melhor que três

A sessão decorre no Tivoli, hotel cinco estrelas na luxuosa Avenida da República, em Lisboa. Dois dos oradores são figuras conhecidas da política portuguesa: Maria José Nogueira Pinto, do CDS-PP, e António Borges, apontado como futuro líder do PSD. Ambos têm um pensamento estruturado sobre a IVG: se quiserem, conseguem rebater, um por um, todos os argumentos do "sim" - sejam eles jurídicos, clínicos, históricos ou culturais. Mas não é para isso que ali estão. A sua missão tem um alcance mais preciso e devastador.

A pouco mais de um mês para o referendo, a plataforma Não Obrigada decidiu que aquele era o timing adequado para lançar um novo trunfo - um trunfo que atingiria, simultaneamente, os movimentos do "sim", o PS e o Governo.

Por essa altura, encontravam-se já afixados nas ruas dezenas de cartazes da plataforma, com rimas fáceis mas eficazes, sobre o sistema cardíaco do embrião e o arrependimento das mulheres que abortam. Era, portanto, o momento adequado para passar do sentimento à prática, do coração ao bolso dos contribuintes. E ninguém melhor do que Nogueira Pinto (mulher de imagem séria e rigorosa na gestão pública, suficientemente distanciada da vida partidária) e António Borges (economista reputado, de quem se diz não gostar da "baixa política") para personificar o discurso antidespesista, para criticar "o financiamento de abortos pelo Estado quando há listas de espera para cirurgias a hérnias" no Serviço Nacional de Saúde.

A sessão acabou por ser um sucesso jornalístico, com toda a imprensa a passar a estimativa de que a despenalização da IVG significaria um custo acrescido de 20, 30 milhões de euros anuais ao orçamento do Estado. Na sequência dessas notícias, o ministro da Saúde e os movimentos do "sim" reagiriam de forma atabalhoada e descoordenada, com os últimos a criticar o primeiro, propondo o seu silêncio sobre o assunto.

Mais uma vez, as duas agências de comunicação que trabalham com a Plataforma Não Obrigada - a Lift e a Partners - tinham motivos de regozijo. A sua estratégia - uma sessão, uma ideia - voltava a revelar-se vitoriosa: impossibilitava que os jornalistas se dispersassem por vários temas, forçando a publicação de uma única mensagem, simples e forte, no eleitorado; e marcava a agenda da semana.

Edite Estrela esbanja argumentos

Sábado, dia 13 de Janeiro, cerca das 15h00, associação dos bombeiros do Barreiro. O PS entra na campanha. A escolha do local, no distrito de Setúbal, é acertada: foi ali que mais gente votou a favor da IVG, em 1998 - a sala está a abarrotar. Houve também cuidado na selecção dos oradores: Jorge Coelho, galvanizador e popular, e Edite Estrela, uma feminista feminina, articulada, estudiosa do tema.

Enquanto esperam que Vítor Ramalho introduza os convidados, os militantes e populares antecipam argumentos. A dúvida não é entre o "não" e o "sim", mas por que é que o "sim" deve ser "sim". Adivinha-se, por isso, que ninguém ali tem dúvidas sobre onde porá a cruz, no dia 11 de Fevereiro.

Não parece, todavia, ser essa a convicção do ex-ministro de Guterres e da ex-presidente da câmara de Sintra. Como se estivessem num comício de antigamente, Jorge Coelho e Edite Estrela demoram-se em explicações. Boas explicações, com razões sólidas e contra-ataques certeiros. Mas explicações demasiado longas, demasiado dispersas.

A ex-presidente da Câmara de Sintra, sobretudo, é particularmente ambiciosa. Não falha nenhum tópico sobre o tema. Só que ao fim de quase meia hora de discurso não se regista um slogan, um assunto: não se induz um título nos jornais, uma frase nas televisões. A isto acresce que, a dada altura, Edite Estrela decidiu fazer, en passant, uma declaração de importância político-partidária, que abafava tudo o resto. Que o PS estava comprometido com o resultado do referendo: se o "sim" não ganhasse era o PS quem também sofreria as consequências políticas. Tratava-se de um aviso para os militantes socialistas. Uma declaração inteligente, que seria devidamente sublinhada na imprensa. Uma declaração que não terá convertido um único indeciso.

A personalização da campanha

Margarida Neto, da Plataforma Não Obrigada, acabara de ter mais uma participação contra a IVG. Sempre muito incisiva e agressiva, intervira no primeiro painel do colóquio do PSD, realizado a 20 de Janeiro. "Ela não tem parado, há dois dias esteve no Porto, depois em Leiria...", elogiava outra activista do "não", à saída da sala do CCB, em Lisboa.

A telegénica psiquiatra é um dos pontas-de-lança dos movimentos pelo "não", profissionalizados na comunicação e totalmente dedicados à causa. Isabel Galriça Neto, médica, especialista em cuidados paliativos, e João Paulo Malta, obstetra, dirigente da Associação dos Médicos Católicos, acompanham-na frequentemente. Em comum, têm a imagem limpa, cuidada, penteada, que passa bem nos noticiários.

São eles os porta-vozes escolhidos minuciosamente pelas agências de comunicação para aparecerem. E sempre que algum jornalista procura indagar sobre questões específicas, junto de outros membros do movimento porventura mais habilitados para responder, os assessores de imprensa sugerem um exercício pouco usual: os especialistas não autorizados "a dar a cara" podem falar, mas não podem ser citados; o jornalista pode ficar com a informação, mas deverá depois contactar os pontas-de-lança, se quiser atribui-la a alguém.

No final, contudo, ninguém parece ficar indignado por permanecer nos bastidores. E não emergem lutas partidárias: o CDS-PP joga no subsolo, mexe com concelhias e distritais, o PSD faz o que pode para angariar votos e calar os "dissidentes", mas é consensual que a partidarização dos movimentos pelo "não" é a pior solução para atingir o objectivo de ganhar o referendo.

As principais tarefas de coordenação e produção de eventos fica, assim, a cargo do núcleo duro da Plataforma Não Obrigada, que faz de pivô dos grupos do "não". Esse núcleo duro - pequeno, coeso e presente - encara cada iniciativa com total dedicação. Como se esta fosse a mais importante batalha das suas vidas.

Filantropia ao fim da tarde

O debate decorre num hotel de três estrelas, decadente, de Lisboa, e a organização está a cabo do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim. A sala tem cortinas de cor desmaiada e padrão duvidoso. Por cima da mesa do painel não há iluminação. Na assistência, elementos da UMAR, José Falcão, do SOS Racismo, estudantes e simpatizantes do Bloco de Esquerda. Mais mulheres do que homens.

O início da sessão estava marcado para as 18h00, mas a essa hora, Marta Rebelo, jurista e chefe de gabinete do secretário de Estado da Administração Local, ainda combinava com os restantes elementos do painel quem falava quando. Passada meia hora, continuava a não haver pressa. Faltava chegar Paula Teixeira da Cruz, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

Minutos depois, no entanto, percebe-se que outros participantes têm constrangimentos de tempo. O presidente do Fórum Justiça e Liberdade, José António Pinto Ribeiro, avisa, antes de começar a falar, que terá de se ausentar "às vinte para as oito".

Nestas circunstâncias, a moderadora decide começar. E decide bem, porque Paula Teixeira da Cruz, que era "esperada a qualquer momento", nunca chegou a chegar.

A situação parece indiciar o modo como boa parte das figuras que se têm mobilizado pelo "sim" encaram o referendo. A campanha é, para eles, uma obrigação cívica importante e todos manifestam uma convicção inabalável da razão do voto "sim". Mas não deixa de ser um part time de fim-de-semana, filantropia ao final do dia: algo que se faz depois das aulas, depois da reunião da empresa, quando fecha o escritório de advogados ou termina o encontro da comissão política do partido.

Cada um esforça-se para dar tempo à causa. Mas são raros os que dormem com a causa, acordam a pensar na causa, sabem o que é que a causa está a preparar para a semana, para o dia seguinte.

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