"As mulheres que cá vêm? Ó meu amor, são quase sempre umas desgraçadas. Mulheres que às vezes nem têm uma pinguinha de leite para dar aos filhos. Pois. A essas nem levo quase nada... é uma caridade que lhes faço." Às outras, cobra 400 euros. Dona Maria tem 60 anos, é enfermeira-parteira reformada e "resolve problemas" há 25. Diz que não é por dinheiro, embora "sempre ajude qualquer coisa". Mas o que está por detrás é a convicção de que "só deve parir quem quer e quem pode e quem ama".
Dona Maria não teme a falta de "clientela", caso vença o "sim" no referendo ao aborto. "Nem todas as pessoas vão ter coragem de ir aos hospitais." E quando se lhe pergunta se vai votar, arregala os olhos, chocada com tamanho descabimento: "Mas é claro que vou! E incentivo toda a gente a votar no 'sim'! Quando vêm aí umas mulheres que me dizem que não vão votar, até se me dão ganas de lhes ir às trombas!"
A sua casa forrada a azulejo fica na zona saloia, perto de Sintra, e o "consultório" está num anexo, nas traseiras. "Entre, entre. Tenho aqui a salinha de espera..." A salinha de espera tem muitas revistas, como convém. Uma edição da Bebé d'Hoje destoa um bocadinho, mas dona Maria avança na apresentação do seu sítio. "E é isto. Como vê, tenho tudo muito limpinho. Vê o aspirador? Custou-me 600 contos! Acolá está a caminha para onde elas vão a seguir, tem um cobertor eléctrico porque ficam cheias de frio. E aqui está a imagem do doutor Sousa Martins, com um terço e uma vela, para ajudar."
Segundo dona Maria, em 25 anos destes trabalhos, nunca nada lhe correu mal. Talvez porque também nunca se meteu em coisas demasiado complicadas. "Só interrompo até às nove semanas. E se tenho dúvidas mando a um médico conhecido." Mas o segredo do seu sucesso não se fica pelas explicações terrenas: "O doutor Sousa Martins [prestigiado médico português que morreu em 1897 e ficou conhecido pela luta contra a tuberculose] ajuda-me muito. E Deus também é muito meu amigo. Ele sabe o quanto eu ajudo estas mulheres!"
Depois da aspiração feita, o que faz ao que aspirou? "Deito para a sanita! É uma coisa de nada, como se fosse um bocado de período preso." E as mulheres, com que estado de alma chegam e com que sentimento partem? "Chegam ansiosas, com um bocadito de medo. Mas eu dou uma anestesia e elas não sentem nada. Depois às vezes saem tristes. Não se aborta como quem come pastéis, não é? É uma decisão violenta. Mas para se tomar é porque não há outra opção possível."
Sobre os efeitos psicológicos de uma interrupção voluntária da gravidez, de resto, as opiniões dividem-se. Há quem defenda que todas as mulheres ficam traumatizadas com um aborto, há quem diga o oposto, como o economista João César das Neves, que defendeu que a despenalização do aborto o tornará uma coisa "tão normal como um telemóvel". Para a psicóloga Milice Ribeiro dos Santos, "esse tipo de afirmação nem merece grandes comentários". As mulheres "são pessoas responsáveis, e se são capazes de cuidar dos filhos também são conscientes para o resto". O que é realmente penalizante psicologicamente, segundo a especialista, "é a situação de clandestinidade em que muitas mulheres portuguesas abortam, que é humilhante, degradante e que mete medo".
Catarina, 28 anos, sabe bem o que é abortar com e sem o peso da clandestinidade. Da primeira vez tinha 21 anos. Quando disse ao namorado que estava grávida recebeu dois estalos na cara e insultos no lugar de um abraço. Foi a um consultório para os lados de Sacavém e não esquece o envelope com 1250 euros entregue em primeiro lugar, depois umas pantufas, depois um aspirador, depois o frio e o silêncio. "Um silêncio doloroso."
Da segunda vez, aos 24, não quis repetir o filme. Meteu-se no carro e foi a Espanha, à Clínica dos Arcos (ver texto ao lado). Pagou menos de metade e foi tão bem tratada que garante: "Não foi fácil, porque nunca é. Mas não me senti um lixo. Senti-me uma mulher que está a fazer uma opção. Difícil. Mas legítima."
Pelo consultório de dona Maria passam hoje menos mulheres "por causa do Cytotec, que elas tomam e têm umas dores malucas e vão quase sempre parar ao hospital para uma raspagem." Mas ainda há quem apareça, numas semanas duas mulheres, noutras semanas uma, e por aí fora, que "há-de haver sempre quem engravide sem querer e sem poder". Neses casos, assegura a parteira, "antes acabar com o assunto logo nas primeiras semanas do que fazer como uma que me chegou aí com uma gravidez escondida de todos, até mesmo do marido, e que queria pari-lo aqui, longe de todos, para depois lhe dar sumiço". E, com um suspiro, encerra: "Isso sim é uma tristeza, meu amor."
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