Os julgamentos da Maia, Aveiro e Setúbal

As instalações do tribunal da Maia eram pequenas para proceder ao julgamento. Foi então montada uma tenda gigante onde decorreu a audiência. O espectáculo ia começar. Naquele espaço entraram uma a uma as mulheres, sobre as quais pendia a acusação de terem praticado um crime a que correspondia uma pena que podia ir até 3 anos de cadeia. Estas mulheres viram e ouviram num silêncio obscurecido pelo espanto, os detalhes sórdidos das suas vidas mal vividas; viram e ouviram pela voz sacralizada e bem audível do tribunal, naquele cenário pesado, rígido e hostil, publicitar o que queriam esquecer, como se o pesadelo se renovasse e num fôlego brutal se abatesse de repente a estilhaçar sem rodeios a sua intimidade; viram e ouviram o discurso da lei, nas caras sérias dos juízes de becas pretas, que discursavam numa oralidade técnica sobre o que fizeram e não fizeram, sobre o que deveriam ter feito e deixado de fazer, sobre o seu corpo, a sua vida, o seu útero e os seus encontros e desencontros.
Ninguém perguntou - "E o que têm os Meritíssimos com isso?", ninguém disse - "No meu corpo mando eu", ninguém ousou sequer questionar - "onde estão os homens, que nos teriam engravidado?", a vergonha a cobrir grotescamente aquele friso de mulheres pobres, mãos húmidas e gargantas secas, o coração a bater num galope sem freio, o medo a espreitar e em cada gesto a vergar a espinha das palavras que não saíram e a instalar-se num silêncio expectante de animal ferido.
As mulheres da Maia foram na sua quase totalidade absolvidas porque se calaram.
Das duas que optaram por falar, uma foi absolvida, porquanto o Tribunal entendeu ter já ocorrido a prescrição por terem decorrido 5 anos sobre a prática do alegado "crime".
A outra foi condenada.
A Europa a que tanto nos gabamos de pertencer, e que ainda nos olha com indisfarçável altivez, condenou inequívoca e indignadamente o julgamento, a lei, o processo, as condenações que dali saíram e toda esta despudorada situação, que nos envergonha a todos, habitantes que somos do séc. XXI.
Mirou-nos com a curiosidade e a distância com que se olham os parentes pobres, que comparecem nas festas com os fatos a cheirar a naftalina, meio boçais e atrasados na sua forma de ler o mundo.
Podíamos ter aprendido alguma coisa com a dolorosa experiência do julgamento da Maia. Mas pelos vistos, os poderes e os poderosos deste país gostaram do evento. E aí o temos de novo reeditado em Aveiro, onde em 2004 decorreu de igual modo um julgamento em que mais uma vez se sentam no banco dos Réus 7 mulheres acusadas da prática de aborto.
Desta vez porém, foi-se mais longe e aí se sentaram também, maridos, namorados, companheiros, pais e até um motorista de táxi que levou uma das mulheres ao local onde alegadamente teria abortado.
Mais uma vez a polícia utilizou escutas telefónicas, vigiou entradas e saídas de mulheres do local onde supostamente se realizariam os abortos, e pasme-se, terá inclusivamente obrigado algumas das mulheres a realizarem exames ginecológicos.
O afã policial, absolutamente digno da Inquisição, denota com nítida evidência até que ponto o fundamentalismo moral dos defensores da actual lei pode chegar.
Setúbal seguiu-se neste roteiro absurdo; mais três mulheres julgadas em 2004, com a polícia a irromper no consultório da parteira, uma polícia ágil no pesadelo que ensombrou durante meses e anos, o tempo de decurso do julgamento e respectivos adiamentos, o dia a dia das arguidas neste processo-crime.
O grande crime das mulheres da Maia, Aveiro e Setúbal, foi o de não terem dinheiro para se deslocarem a Espanha ou a qualquer outro país da Europa, para aí com dignidade e respeito pela sua intimidade e saúde, praticarem este acto médico, que o aborto é.
Aquando do último referendo, todos aqueles que defendiam a continuação desta lei hipócrita, sussurravam numa falsa cordialidade que em Portugal as mulheres nunca seriam nem julgadas nem penalizadas por terem voluntariamente interrompido a gravidez.
Mentiam e pior do que isso, sabiam que mentiam.
Por isso é fundamental a mobilização para o próximo referendo; é fundamental acertar as contas com a dignidade negada, com o cheiro a medo que se exalava destas mulheres mergulhadas num silêncio doloroso que não escondia contudo o barulhar de uma raiva legítima.
Vivemos em democracia há quase trinta anos. A lei que diz que o aborto é um crime é uma excrescência do fascismo que envergonha e humilha o regime democrático.
Mas não só. Envergonha-nos e humilha-nos a todos. Homens e mulheres. E a quem nada fizer para a mudar.
Alice Brito, Advogada
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