domingo, dezembro 17, 2006

O Referendo sobre a IVG: um apelo à participação

Texto em publicação no jornal A Cabra

Estamos em campanha para mais um referendo em que se vai decidir sobre se a interrupção voluntária da gravidez (IVG) deve continuar a ser crime ou se deve passar a ser legal até às 10 semanas de gestação. Um estudo divulgado recentemente prevê a existência de mais de 350 mil mulheres portuguesas que já praticaram aborto. Estima-se que se praticam por ano cerca de 20 mil abortos clandestinos em Portugal. Muitas mulheres portuguesas com mais posses económicas deslocam-se a Espanha a fim de poderem ter a devida assistência clínica no país vizinho, onde a IVG é legal, pois Portugal faz ainda parte do escasso número de países europeus onde o problema está por resolver. O aborto clandestino, além de colocar perante riscos acrescidos, por falta assistência adequada, os milhares de mulheres que a ele são forçadas a recorrer por variadíssimas razões, é um negócio chorudo para as “clínicas” clandestinas onde o abordo continua a ser praticado em condições precárias e sem qualquer segurança para quem o pratica.
Este problema tornou-se um autêntico flagelo e um atentado à saúde pública. É preciso encará-lo e resolve-lo. Mas, independentemente do resultado do referendo do próximo dia 11 de Fevereiro, não se sabe se o mesmo conseguirá obter a percentagem mínima de participação dos eleitores para que o mesmo seja vinculativo. É por isso fundamental a mais ampla participação neste acto eleitoral já que se trata de um assunto público e não privado. E convém recordar àqueles que acham que esta é uma questão do foro íntimo que isso só será verdade após a descriminalização da IVG.
A importância da participação dos jovens é particularmente decisiva, desde logo porque as situações de gravidez indesejada são elevadas entre a juventude, sendo o abordo a primeira causa de morte entre as mulheres jovens e adolescentes. Para além disso, são os e as jovens de hoje que mais podem beneficiar de uma legislação que ponha fim ao flagelo do aborto clandestino e à situação vergonhosa de mulheres perseguidas ou condenadas como criminosas. Por outro lado, o abstencionismo entre os jovens – onde é suposto haver uma maior informação sobre a sexualidade e uma maior sensibilidade quanto à dimensão social deste problema – irá favorecer a influência dos sectores mais conservadores da Igreja católica, que se faz sentir sobretudo entre as camadas mais idosas. Apesar das posições públicas no sentido de se assumir que esta é uma questão social e política e não do foro religioso, é sabido que o moralismo conservador dessas correntes possuem um impacto alargado na sociedade portuguesa.
Independentemente da orientação de cada um a este respeito, uma ampla participação é fundamental, além do mais porque é um direito e um dever de cidadania o envolvimento de todos nesta matéria. Acresce que a própria formulação da pergunta do referendo contém, a meu ver, um erro crasso quando refere que a IGV é uma opção por “exclusiva vontade da mulher”, o que tenderá a incentivar a indiferença dos homens. Isso é errado e perigoso, desde logo pela razão óbvia que a mulher não fica grávida sozinha. A ideia induzida pela pergunta vai no sentido da desresponsabilização do homem. Mas, como se sabe, é muitas vezes o parceiro masculino quem mais contribui para a prática do aborto quando se recusa a assumir a paternidade e os subsequentes deveres e obrigações que isso implica. Por isso é fundamental que a juventude, as mulheres e os homens, participem em massa neste referendo.
Qualquer que venha a ser o resultado do referendo, o flagelo do aborto combate-se principalmente com mais educação sexual, mais informação e mais medidas preventivas que evitem a gravidez indesejada. Assim, a questão que deve ser colocada antes de nos pronunciarmos no referendo não é a de nos perguntarmos se somos a favor ou contra a prática do aborto. Trata-se sempre de uma situação dolorosa e geralmente traumática para a mulher. Nesse sentido, todos somos contra. Por isso, a pergunta que cada um deve colocar é a de saber se queremos manter uma situação de facto a todos os títulos socialmente deplorável ou se é chegado o momento de Portugal se juntar aos países mais modernos e avançados nesta matéria, despenalizando a IVG.

Elísio Estanque
Sociólogo - Centro de Estudos Sociais

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