sábado, outubro 21, 2006

Maré Ideológica ou Fantasma Hipócrita?

O aborto e as marés ideológicas

João César das Neves
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Cresce a possibilidade de termos um novo referendo sobre a liberalização do aborto. A discussão no Parlamento está agendada e os jornais há muito ateiam o tema. Tudo indica que o poder político nos vai perguntar se mudámos de opinião desde 1998.

O aspecto mais chocante desta reedição é, sem dúvida, o momento escolhido. Hoje, ao contrário de há oito anos, o País vive uma crise grave, com estagnação económica, alto desemprego, fortes carências e contestações em múltiplos sectores. Iniciar nestas condições um debate sobre uma questão tão controversa e dolorosa parece loucura total.

Não é certamente por sérias razões políticas, sociais e de interesse nacional que o referendo vai ser marcado. Se tivesse sido imposto de fora, diríamos tratar-se de sabotagem inspirada por potências inimigas. Que o próprio Governo da República lance o processo é inacreditável.
(...)
É difícil imaginar como é que o tempo entra numa questão tão básica e perene como esta. O aborto, como o terrorismo ou o crime, não melhora com o desenvolvimento, flutua com a moralidade. Mas as marés ideológicas nunca seguem a lógica.
(...)
A maré mudou e agora o mesmo tipo de raciocínio passou dos inimigos da liberdade económica para os que atacam a família e a vida (que aliás são, em geral, os mesmos). Com uma diferença fundamental. De facto, o sistema colectivista tinha à partida hipóteses teóricas de funcionar. As dificuldades de implantação revelaram-se insustentáveis, mas ao nível da concepção está demonstrada a equivalência potencial de resultados entre economia dirigida e descentralização mercantil. Pelo seu lado, a liberalização do aborto não tem nenhuma hipótese de futuro. Na dinâmica das civilizações, a dissolução doméstica, promiscuidade sexual e obsessão venérea são sempre sinais de decadência, não de desenvolvimento. Aliás, a Europa vive já uma grave crise de valores e uma catástrofe demográfica, que lhe serão fatais na dinâmica global dos blocos. Precisamente porque a sua cegueira ideológica é avassaladora.
(...)
A maré vai mudar. Entretanto a alteração da lei tem um aliado perigoso: o comodismo burguês. Não faltam os que dizem coisas como: "Eles não nos largam com isto, o melhor é deixá-los mudar a lei para ver se se calam." Além de cobarde e cínico, trata-se de um erro clamoroso. Porque "eles" não se vão calar, tal como os revolucionários da geração anterior só pararam diante da catástrofe económica. Reforçados com uma evental vitória que a cobardia lhes concedesse, iriam promover outras mudanças, menos sangrentas mas mais depravadas.

Portugal em 1998 conseguiu conter a principal maré ideológica do nosso tempo. Se o aborto tivesse sido liberalizado, sofreríamos agora a confusão de temas que países próximos, com leis mais "avançadas", sofrem. E viveríamos os terríveis estragos humanos que por lá se vivem.


O fantasma da liberalização no discurso conservador da intolerância e do medo

Maria José Magalhães
mjm@tvtel.pt
Há anos que semanalmente somos confrontadas/os com uma coluna semanal de César das Neves que continua no seu esforço de prosseguir numa ideologização da intolerância, do agitar dos fantasmas do pânico social.
Evidentemente, que o aborto não poderia deixar um tema predilecto em tais crónicas tão misóginas, sexistas e homofóbicas semanais.
Para a direita conservadora e misógina, desde 1998, nunca é boa altura para o referendo. Nunca é bom o momento para debater racionalmente e democraticamente uma mátéria que tem sido regida por uma moral rígida e medievalesca de perseguição das mulheres e suas famílias por decidirem interromper uma gravidez.
E, claro, tinha que vir o fantasma da liberalização. E observe-se como esta crónica fala de “potências inimigas” e “catástrofe demográfica”, ateando fogos e ódios guerreiros sobre um tema que tem significado um atraso civilizacvional grave na sociedade portuguesa.
Para o conservadorismo mais tachanho e medievalesco, é claro que a possibilidade de as pessoas terem direitos sociais e decidirem das suas vidas é algo que consideram chocante porque lhes é insuportável a vida em democracia, onde um estado laico respeita concepções éticas e morais diversas e não impõe autoritariamente uma única concepção ética e moral.
É claro que nestas crónicas com que somos semanalmente presenteados/as, há um saudosismo do lápis azul da censura, do tempo em que não havia ideologias (só uma), em que a moral, a ordem e a lei se confundiam com os cassetetes, as prisões e as torturas. Não é por acaso que nestas crónicas não se quer voltar a consultar o povo português, porque o que é desejado que as mulheres sejam torturadas com exames ginecológicos forçados, como aconteceu com o julgamento de Aveiro, com inquirições na PJ sem conhecimento sobre que acusação pendia sobre elas, como aconteceu no Julgamento da Maia, ou com aborto interrompido e serem forçadas a levar uma gravidez até ao fim contra sua vontade e, depois de a criança ter nascido, ainda ser levada a tribunal como aconteceu no julgamento de Setúbal.
Claro, tal como os inquisidores dos tempos que não gostaríamos de lembrar, faz-se questão de associar à temática do aborto, as “obsessões venéreas”, a “promiscuidade sexual” e outros epítetos que mais não são do que a prova do ódio que nestes parágrafos perpassa contra as mulheres, como o ódio e o medo que na Idade Média tinha em relação à menstruação feminina.

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