domingo, fevereiro 04, 2007

«Os limites de cada um», por Helena Matos no "Público" de ontem

Pois aqui estamos no ano de 2007 referendando "a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado". Mas porquê e para quê? Comecemos pelo porquê.
O que terá levado um país que descolonizou (em seis meses note-se!), entrou na CEE e no €uro sem que alguma vez se tivesse colocado a hipótese de referendar a vontade dos seus cidadãos a avançar para um referendo sobre uma matéria de consciência? Os portugueses não pediram este referendo. Ele foi-lhes imposto através dum acordo entre um primeiro-ministro, António Guterres, e um líder da oposição, Marcelo Rebelo de Sousa. Ou seja, duas pessoas que são contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas. Com essa decisão não sei se ficaram de bem com as respectivas consciências mas tenho a certeza de que prestaram um mau serviço aos portugueses, que se vingaram abstendo-se, e prestaram também um mau serviço à democracia - note-se que actualmente se começa a dar como facto consumado que se terá de alterar a lei do referendo para contornar a fraca participação dos portugueses nestes escrutínios.
Mas esta opção de Marcelo e Guterres remete para uma outra questão que é muito dos nossos dias e muito mais lata que a polémica em torno da interrupção da gravidez: podem ou não as convicções religiosas ou a pertença a determinadas associações sobrepor-se, em termos de obediência, aos compromissos assumidos na vida pública e política? Todos os dias nos chegam notícias sobre mulheres polícias muçulmanas que, trabalhando na polícia britânica, se recusam a cumprimentar os homens, ou sobre os taxistas muçulmanos que, apesar de trabalharem em aeroportos norte-americanos e não na Arábia Saudita, se recusam a transportar os passageiros que tragam bebidas alcoólicas... Estes são casos em que claramente não só as convicções religiosas se sobrepõem não só às obrigações profissionalmente assumidas como se subestimam completamente os valores do outro e da sociedade em que se vive.
Noutros casos somos confrontados com algo menos obviamente agressivo mas não menos inquietante. Por exemplo, em que medida é que, para alguns políticos portugueses, a pertença à Maçonaria se sobrepôs e sobrepõe à filiação partidária e aos compromissos publicamente assumidos. Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde português foi apresentado primeiro à Maçonaria do que ao Governo pelo ministro que o concebeu.
No caso do referendo à interrupção voluntária da gravidez estamos claramente perante um caso em que dois líderes políticos deixaram que as suas convicções íntimas se sobrepusessem às suas responsabilidades públicas e políticas. A interrupção voluntária da gravidez estava em discussão na Assembleia da República e o recurso ao referendo não fora sequer equacionado, quer para esta questão quer para outra qualquer.
De facto, a interrupção voluntária da gravidez não devia ser sujeita a referendo. Tal como não o foi o divórcio para o casamento civil ou o acesso livre aos métodos contraceptivos.
Imagine-se que estes dois assuntos tinham sido referendados. Do lado do "não" discutir-se-ia infinitamente o apoio que o Estado devia dar aos casais em crise, as consequências dramáticas do ponto de vista social e familiar dum divórcio, o impacto psicológico dessa ruptura e o arrependimento de muitos daqueles que tomaram tal decisão. A mesma técnica de sofista infatigável se pode aplicar no que respeita ao acesso aos métodos contraceptivos. E contudo estes, num passado não muito longínquo, foram vistos como algo que comprometia os alicerces e os valores mais profundos da nossa sociedade.
Suponha-se que se tinha referendado o acesso livre aos métodos contraceptivos em 1976 em vez de se instituírem as consultas de planeamento familiar?! Dito assim parece despropositado. Não nos imaginamos a viver numa sociedade em que os outros pudessem decidir sobre se podíamos ou não divorciar-nos ou voltar a casar e muito menos nos parece aceitável que fosse o Estado a determinar se podíamos ou não recorrer aos contraceptivos. E contudo vamos votar para decidir se as mulheres podem ou não interromper uma gravidez até às dez semanas.
Quando Vasco Rato, no último «Prós & Contras», na RTP1, perguntou "Mas se não for a pedido da mulher deve ser a pedido de quem?" não obteve resposta em nenhuma das vozes que, segundos antes, tanto se indignavam com a possibilidade de a mulher decidir, expressa na pergunta do referendo. Mas, na verdade, se não for a pedido da mulher, uma interrupção de gravidez deve ser a pedido de quem?
Aquilo que divide o "sim" do "não" são concepções diferentes do nosso poder sobre a intimidade dos outros e em que medida o Estado lhes deve impor as opções que nós temos como certas. Até onde achamos que o Estado pode controlar não só ou nem tanto as nossas vidas mas sobretudo a dos outros? Esta é a questão que está omnipresente quando votarmos a 11 de Fevereiro.
O que está em causa neste referendo não é o que nós fazemos, faríamos ou fizemos quando e se confrontados com o dilema de interromper ou não uma gravidez. O que está em causa é o nosso direito a impor uma gravidez.
Pessoalmente não creio que qualquer um de nós tenha ou possa ter esse direito.

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