sábado, novembro 04, 2006

Sinceramente!

Público
Vítor Dias

Achei graça ver a deputada do PS Edite Estrela a classificar, com algum exagero, de "inútil" a lei em vigor, só lhe tendo faltado explicar aos telespectadores que se perderam 22 anos precisamente porque em 1984 dezenas e dezenas de deputados do PS se abstiveram ou votaram contra o projecto do PCP que correspondia, nos seus traços fundamentais, àquilo que o PS e Edite Estrela agora defendem ser indispensável e inadiável.
Embora saiba, e já aqui o tenha escrito, que uma forte concentração de atenções na discussão da despenalização do aborto é uma bênção dos céus para o PS, para o seu Governo e para a sua política que se está confirmando como desastrosa em domínios essenciais para a vida dos portugueses, a verdade é que não consigo deixar de voltar esta semana ao tema, talvez na esperança de que, antes da pré-campanha do provável - mas malfadado - referendo, certos esclarecimentos e argumentos possam ser mais úteis e eficazes.
E, por isso, embora saiba que, a seguir à riqueza, talvez o sentido de humor seja uma das coisas mais mal distribuídas no país e no mundo com as perversas e inacreditáveis consequências que se conhecem, arrisco-me a dizer que, sinceramente, gostei muito da intervenção dos oponentes da despenalização da interrupção voluntária da gravidez no Prós e Contras da passada segunda-feira, na RTP1.
Para começar, e fazendo justiça a quem mais a merece, gostei muito do desempenho, protagonismo e veemência de uma deputada do PSD, de seu nome Zita Seabra, e do património de coerência de análises e de abordagem do problema do aborto que testemunhou de forma inesquecivelmente impressiva.
E, neste caso, só foi pena que porventura possa ter ficado na cabeça dos telespectadores alguma confusão sobre se ela em 1984 seria deputada do PS (quando se aprovou a lei em vigor que tanto defende como bastante e suficiente) e se seria com tal pensamento que foi "ajudar os espanhóis"; se seria já deputada do PSD que votou contra a lei vigente; ou se seria deputada do PCP que, pela sua ou outra voz, considerou a lei então aprovada (tendo por base um projecto do PS) muito insuficiente do ponto de vista de uma eficaz resposta ao problema central do recurso ao aborto clandestino.
Abrindo uma única excepção nas referências a adversários da despenalização, a verdade é que se não gostei muito, pelo menos achei graça ver a deputada do PS Edite Estrela a classificar, com algum exagero, de "inútil" a lei em vigor, só lhe tendo faltado explicar aos telespectadores que se perderam 22 anos precisamente porque em 1984 dezenas e dezenas de deputados do PS se abstiveram ou votaram contra o projecto do PCP que correspondia, nos seus traços fundamentais, àquilo que o PS e Edite Estrela agora defendem ser indispensável e inadiável.
Regressando ao campo do "não", também gostei muito, entre outros congéneres, do cortante discurso de Gentil Martins a introduzir com todas letras a identificação do aborto com o "matar uma vida humana", embora deva confessar que, prisioneiro da mania das decorrências lógicas, tive pena que o ilustre e competente médico não se lembrasse de declarar, em conformidade com essa sua frase forte, que os três anos de prisão previstos no Código Penal para este "crime" do aborto são uma ninharia e que deveriam passar para os 18 anos em regra aplicados aos homicídios voluntários.
Gostei muito daquele médico integrante do painel principal e ligado aos movimentos ditos "pela vida" a levantar a mais que pertinente questão de por que não nove e meia ou dez e meia em vez das taxativas 10 semanas, prazo por sinal encurtado há uns anos - acrescento eu - pelo deputado do PS Sérgio Sousa Pinto na esperança de assim captar uns votos reticentes na sua bancada, e depois absurdamente mantido pelo PS e secundado pelo BE, como se uns e outros não conhecessem as diversas e fundamentas razões que levaram, em 2001, o Parlamento francês a passar o prazo de 10 para 12 semanas, como o PCP sempre defendeu.
Entretanto, por franqueza, não posso deixar de anotar que a minha admiração pela intervenção deste médico tem de ser moderada pelo facto de ele ter menosprezado o raciocínio popular de que perguntas destas se podem fazer para todos os prazos (até, por exemplo, para pagar impostos) e por ter ignorado que, no quadro realmente existente de aborto clandestino, no limite, pode nem haver prazos nenhuns, tudo dependendo da consciência e bom senso da mulher que decide interromper uma gravidez e de quem, em termos práticos, a concretiza.
Embora sem ser propriamente nova, antes pelo contrário, continuei a gostar da maravilhosa técnica usada pela direita política e que consiste em passar anos e anos a dormir na forma e só à beira da discussão de projectos de despenalização acordar para a apresentação de resoluções da AR, como aquela de 3.3.2004 do PSD exibida, com sentido crítico, pelo médico Miguel Oliveira e Silva, na qual se exigia o integral e eficaz cumprimento da lei em vigor e reclamando novos impulsos na educação sexual e no planeamento familiar, ou então prometendo ultimamente iniciativas legislativas consagradoras do "crime sem pena" que permitam acabar com a "chatice" dos julgamentos de mulheres e a sua correspondente entrada nos alinhamentos dos telejornais.
De igual modo, gostei muito que, de uma forma geral, os oponentes da despenalização do aborto (que está associada à indispensável possibilidade de a IVG, por opção da mulher, ser praticada em condições de segurança médica e de acompanhamento em estabelecimentos de saúde legalmente autorizados) se tenham mantido firmes e intransigentes na atitude de considerar que os perigos de o aborto se transformar numa forma de contracepção, da "matança" de seres indefesos e de inadmissíveis atentados contra a vida humana virão da aprovação de uma lei da República que não obrigará nenhuma mulher a usá-la ou aproveitá-la, e não da realidade, tão silenciosa quanto dramática, dos abortos clandestinos que todos sabemos serem feitos em todos os dias de todos os anos, em Portugal. E que representa, ela sim, a máxima "liberalização do aborto" que se possa imaginar.
Por fim, não só gostei muito como adorei que os oponentes da despenalização, para além de lhe terem sido fiéis, continuem a aperfeiçoar (agora com a defesa do fim dos julgamentos de mulheres) uma magnífica e sofisticada ambivalência que tão rendosa se tem mostrado.
E que consiste em terem inovadoramente criado o conceito de "crime" sem a correspondente existência de "criminosas", em despejarem as mais duras palavras sobre o acto do aborto e, ao mesmo tempo, se desdobrarem em palavras de compreensão, solidariedade e infinita compaixão para com as mulheres que o realizam (80 ou 90 por cento das quais serão católicas).
Superiores inteligências estas que perceberam que dirigir as duras palavras às mulheres seria hostilizá-las, agredi-las e empurrá-las para o voto no "sim", enquanto as duras palavras sobre o acto praticado reavivam dolorosas recordações e incutem retroactivamente sentimentos de culpa que muitas julgarão poder atenuar, ou ser "perdoadas", com um voto pelo "não".
Como será bom de ver, em toda esta prosa, a verdadeira sinceridade está na advertência final de que é necessária atenção, muita atenção, a máxima atenção porque vem aí uma batalha muito difícil, áspera e exigente.
Consultor

1 comentário:

Anónimo disse...

http://www.redejovensigualdade.org.pt/blog/